lunes, febrero 15, 2010

Carcará

Hoje, no topo do prédio da frente, havia um carcará. Ao lado de uma antena parabólica que, de perfil, parecia também um pássaro. Por toda parte, piavam e voavam dezenas de pardais, como fazem os pássaros nos dias lindos como este.
Mais majestoso que os ruidosos pardais e mais elegante que a antena invejosa, havia o carcará. Ouvi-o carcarando enquanto me arrastava aqui, miseravelmente, por ambientes virtuais e frios, longe do sol lá de fora. Irônico mesmo foi eu tê-lo visto através da tela de proteção da minha janela, originalmente instalada por razões de segurança infantil, hoje mantida por preguiça de tirar e, quem sabe, para frustrar algum impulso suicida. Não de minha parte, claro, que adoro viver. Menos em alguns dias. Menos hoje.
Fato é que ver o carcará me fez perceber que o sentimento negativo que me dominou hoje foi justamente o de privação da liberdade. Me senti preso por essa rede na janela, como se ela tivesse capturado e selado o prédio todo. Cativo do ninho que eu mesmo estou construindo, com tanto carinho. Pior é saber que sair de casa não bastaria, que talvez nem viajar ou pular de pára-quedas bastaria. Que o confinamento continuaria. Ele é discreto e interno.
Fiquei bons minutos observando o carcará. Tentando entender o que ele achava da vida, se se sentia solitário e incapaz em algum momento. Qualquer tentativa verbal de comunicação entre eu e o falconídeo resultaria ridícula, então tentei me comunicar telepaticamente com ele. Na falta de algo melhor para dizer, acho que acabei mentalizando algo como "troca de lugar comigo, por favor". Foi uma atitude desesperada e humilhante de minha parte, admito. E se ele captou o que eu queria dizer, acho que se ofendeu. Porque logo em seguida, esticou as pernas e fez o que eu mais queria e não podia no momento.
Voou para longe.

viernes, enero 08, 2010

Poeta Enrustido

É do conhecimento comum de toda a comunidade universal a singularidade do método reprodutivo dos homo-sapiens-sapiens. Não há nesta esfera nenhum ato tão sádico, apaixonado e ironicamente belo. A fonte única de tamanha beleza está obviamente na mulher. De fato, é nisso que ele está pensando, neste exato momento, enquanto contempla a perfeição das curvas, a precisão dos pontos de maciez e a inexplicável cor do corpo sonolento de sua amada, após uma noite de amor pulsante. Ela, em sua sensibilidade feminina, percebe no ar o teor sublime do instante e indaga:

- Que foi?

Mas não há resposta que se digne, não há palavras em nenhum idioma que possam transparecer uma vaga idéia daquilo que é nesse momento e para sempre será o objeto do seu regozijo visual. Agradece a Deus por ter olhos. E mãos.

- Você é linda.

- ‘Brigada.

- Obrigado a você.

Ela sorri. Ele é poeta, claro. Aquele tipo de homem que acha poético não ser poeta. Modesto, falsamente. "Poeta, eu? Quem me dera... quem me dera..." Sempre naquele ar melancólico de artista solitário, mas que não é artista, imagine, "quem sou eu..." Ela:

- Você tá daquele jeito de novo.

- Que jeito?

- Você sabe... poeteiro.

- Ora, que bobagem.

- Olha que cresce pêlo na mão, hem...

Riem, brincam com os travesseiros, recomeçando descontraidamente a velha discussão. Ela encosta o dedo sem esmalte na ponta do nariz dele, cantarolando.

- Poetinha, poetinha...

- Não so-ou, não so-ou...

- É si-im, é si-im...

- Ora, deixe disso.

Não era poeta, que coisa. Só porque tinha um violão, fumava e gostava de olhar o pôr-do-sol, admirando os tons de amarelo e laranja avermelhado pegarem fogo e sumirem num oceano azul que gradualmente se torna negro e salpicado de tremeluzentes pontículos brilhantes? Ela olha pra ele com aquela cara de paciência complacente.

- Pontículos, amor?

- Qual é o problema?

- Neologismo é coisa de poeta.

- Isso não é neologismo, é licença poétic...

- A-HÁÁÁÁ!

Ele fica vermelho de raiva, sabe que errou, quase falou besteira, ela era capciosa, sagaz, e a expressão de triunfo dela aumentava sua indignação.

- Boba!

- Enrustido!

- Não sou!

- É sim!

- A palavra existe, tá? Pergunta pro Houaiss!

- Quê?

- Esquece!

Não existia, ele já procurou. Existia pontícula, mas ela não ia cair nessa. Ela era realmente sagaz, irresoluta, talvez por isso ele se apaixonara. Contradições de poeta. Talvez no Aurélio tenha, ele pensa, mas não se anima para procurar. Eles ficam calados, emburrados, brabos, de braços cruzados por uns bons minutos. Até que os ânimos naturalmente vão se acalmando, aos poucos. Ela toma a iniciativa.

- Benhê...

- Hum.

- Que é que tem de mais?

- Em que?

- Qual é o problema em ser poeta?

- Nenhum, mas não é pra qualquer um, eu conheço o meu lugar no mundo, sou mundano, ordinário.

"Metido", ela pensa, a fúria voltando às suas faces. "Metido, metido, metido!" Mas ela se controla, não se manifesta. Em vez disso sorri, passa a mão no rosto dele e pede:

- Admite, vai...

- Nunca.

- Por favor...

- Conforme-se, querida, você não ama um poeta. Minha veia poética é um mero capilar.

Ela não resiste. Pula na cama, ficando de pé, apontando para ele com um dedo acusador.

- Tá vendo!? Tá vendo!?

Ele peida alto e vai dormir na sala.

Seu Pinduca - parte 1

- Acode aqui, pur favô!
Foi o menino que berrou, descendo a rua 10, pisando na fulô.
- Socorro, dotô, Seu Pinduca arriô! Como pode, nem caduca o Seu Pinduca, arriô!
Seu Pinduca era um viúvo que andava meio curvo já, por causa da artrite e de uma tal de Hepatite, que diziam ser a moça que lavava sua louça antes de bater as botas. Nem celebraram bodas, pois "a gaita que me resta não é pra fazer festa" - ele dizia. E nunca ninguém soube muito bem o que fazia, pois o velho era calado, não falava do passado. Na verdade só se dava com os guri do povoado. Apesar da sua idade ele brincava com os moleque e dava a eles uns chiclete da cidade. Contava piada e prosa fiada de atos que nunca tinha feito. E ganhava todos os campeonatos de peido. Mas a grande façanha, a coisa mais estranha que se viu ele fazer, foi ensinar a gurizada toda a ler e escrever, coisa que adulto algum jamais pôde aprender...

(continua)

miércoles, enero 06, 2010

Memento

Hoje me ocorreu de me gabar de ter uma boa memória. Não que eu seja algum tipo de Rain Man, mas ela, minha memória, é bem curiosa. Dizem que a memória da gente é seletiva. Pois bem, o que a minha seleciona é divertido, pois não tem critério algum. Memória aleatória, eu diria. Até rima. Em geral, lembro-me muito bem da minha vida, pessoas que conheci, coisas que fiz. Em detalhes, lembro de algumas coisas importantes, sim, mas outras absolutamente banais, como trechos de conversas que fazem as pessoas dizerem “sério, eu disse isso?” quando lanço algum “lembra daquela vez...”. Dá uma sensação de poder tão efêmera quanto ilusória, mas é divertido: “pois é... eu lembro muito bem... dá mole pra você ver, conto pra todo mundo!” “Oxi, pode contar, to nem aí”. Merda, quase.

Uma vez quando eu tinha uns 6 anos eu resolvi que ia me lembrar de uma coisa para nunca mais esquecer. Estava na aulinha de judô (adulto faz aula, criança faz aulinha... com tio ao invés de professor... se bem que tio de judô a gente tem que chamar de sensei), já no finalzinho, na parte da farra da criançada, e resolvi fingir que estava dormindo. Moleque tem dessas coisas, decide fazer algo “porque sim” e faz. Fiquei “dormindo” e alucinando meus pensamentos infantis surreais enquanto o caos de lutinhas reinava à minha volta, quando resolvi “porque sim” que ia me lembrar daquele momento pra vida toda. Não precisei de nenhum motivo para isso, só fixei na cabeça que ia lembrar e pronto. Aqui estou, com vinte e tantos anos, e ainda lembro essa tolice. Thinking back, penso que deveria ter ao menos tentado aplicar uma técnica parecida no Ensino Médio, para nunca mais esquecer física, química, matemática e biologia, o combo do inferno. Se errar é humanas, já nasci errado. E errante pra caralho. Falando nisso, uma das fases da minha vida que melhor lembro é a adolescência. Infelizmente.

É meio polêmico falar isso assim na lata, mas adolescente é tudo retardado. Acha que sabe de tudo e não sabe de bosta nenhuma. Despreza todo e qualquer conselho de alguém mais velho porque tem a doce ilusão de que é um ser humano autêntico, portanto seu espectro de experiência estaria em um patamar subjetivo demais para ser compreendido por outrem. Na prática, é tudo a mesma racinha e faz sempre as mesmas merdas. E é tudo feio, pelo menos os meninos. As meninas em geral ficam até bonitinhas, mulherezinhas em miniatura. Mas os meninos ficam simplesmente bizarros. Bigodes disformes, corpo desproporcional, espinhas, voz oitavante, orelha grande, braço fino, mão grande, pedra no mamilo, hahahaha é hilário. E a vaidade comum dessa idade só deixa os idiotas mais engraçados, tentando posar de gatões. Os adolescentes podem me levar a mal, não me importo, mas sinceramente não é nada pessoal. Quer dizer, é sim, é literalmente pessoal. Meu desprezo volta-se 90% para minha própria memória de adolescente retardado. Minha memória é boa.

Quem há de discordar do teor patético (e hipotético, digamos, só para ilustrar) de um moleque como o descrito acima tentando impressionar sua colega de sala gatinha demonstrando seu engajamento político e firmeza de postura e caráter:

- Porra, foda, viu.

- O que?

- Essa sociedade.

- ... (donzela sem palavras).

Ponto.

Aqui começa a ficção.