Hoje, no topo do prédio da frente, havia um carcará. Ao lado de uma antena parabólica que, de perfil, parecia também um pássaro. Por toda parte, piavam e voavam dezenas de pardais, como fazem os pássaros nos dias lindos como este.
Mais majestoso que os ruidosos pardais e mais elegante que a antena invejosa, havia o carcará. Ouvi-o carcarando enquanto me arrastava aqui, miseravelmente, por ambientes virtuais e frios, longe do sol lá de fora. Irônico mesmo foi eu tê-lo visto através da tela de proteção da minha janela, originalmente instalada por razões de segurança infantil, hoje mantida por preguiça de tirar e, quem sabe, para frustrar algum impulso suicida. Não de minha parte, claro, que adoro viver. Menos em alguns dias. Menos hoje.
Fato é que ver o carcará me fez perceber que o sentimento negativo que me dominou hoje foi justamente o de privação da liberdade. Me senti preso por essa rede na janela, como se ela tivesse capturado e selado o prédio todo. Cativo do ninho que eu mesmo estou construindo, com tanto carinho. Pior é saber que sair de casa não bastaria, que talvez nem viajar ou pular de pára-quedas bastaria. Que o confinamento continuaria. Ele é discreto e interno.
Fiquei bons minutos observando o carcará. Tentando entender o que ele achava da vida, se se sentia solitário e incapaz em algum momento. Qualquer tentativa verbal de comunicação entre eu e o falconídeo resultaria ridícula, então tentei me comunicar telepaticamente com ele. Na falta de algo melhor para dizer, acho que acabei mentalizando algo como "troca de lugar comigo, por favor". Foi uma atitude desesperada e humilhante de minha parte, admito. E se ele captou o que eu queria dizer, acho que se ofendeu. Porque logo em seguida, esticou as pernas e fez o que eu mais queria e não podia no momento.
Voou para longe.