miércoles, diciembre 04, 2013

O porteiro Otirb

O senhor Otirb era um porteiro mal-humorado. Bom, na verdade mal-humorado nesse caso seria um eufemismo grave. Ele era grosso, estúpido, anti-social. Tratava a todos com absoluto desprezo. Não respondia bom dia, boa tarde ou boa noite. Se alguém o cumprimentava e esperasse a resposta, ele grunhia (às vezes latia) algo incompreensível e olhava para outro lado. No prédio onde trabalhava, os moradores até tinham receio de lhe dirigir a palavra ou sequer o olhar, tamanho o desdém que ele emitia, aparentemente por toda a espécie humana. Otirb pegava geralmente o período noturno e invariavelmente dormia no serviço, provavelmente para interagir menos ainda com os moradores que chegavam tarde. Obviamente ninguém (nem o síndico) nunca teve coragem de acordá-lo. Seria como mergulhar no vinagrete e depois acordar um tigre faminto. Morte na certa.

Até que um dia mudou-se para o prédio o jovem Ordep. Ordep era mais sensível que a média e, a princípio, também indignou-se com o desgosto e falta de tato do senhor Otirb. Não se conformava com o fato de existir alguém tão absolutamente amargurado e sem o mínimo de empatia. Com o passar do tempo, pôs-se a pensar nas motivações que poderiam existir para aquele comportamento. Raiva do emprego, depressão, problema na família, empréstimo no banco, furúnculo na bunda, consciência política, verme. Todos esses seriam fatores em potencial para drenar a felicidade de alguém. Mas Ordep acabou chegando à conclusão de que Otirb era simplesmente capaz de ler pensamentos. Lembrou de si próprio cumprimentando o senhor Otirb, sendo recebido com aquele desprezo glacial e pensando "aff, grosso da porra". E imaginou os balõezinhos de pensamento dos outros vizinhos: "nossa, que antipático", "ê, infeliz", "filho da puta, nem pra abrir a porta pra mim", "alguém tinha que demitir esse inútil", "a esposa deve ter dormido de calça jeans". Ordep pensou muito nisso. Realmente, ler pensamentos devia ser o poder mais triste e arrebatador da existência. Talvez quando criança o senhor Otirb não fosse assim tão desgostoso da vida, mas anos de mentiras, falsidade e insultos mentais poderiam ter endurecido seu coração e, consequentemente, sua expressão facial e trato geral com o próximo. Era uma explicação perfeita, pois fechava o ciclo de ódio que se retroalimenta eternamente. Era isso, tinha que ser.

Desde então, Ordep decidiu pensar apenas coisas positivas quando encontra o senhor Otirb. Por algum motivo achou que ele tinha cara de cristão, então passou a pensar "Deus te abençoe, Otirb". Intercalando com "grande Otirb véio de guerra", "obrigado, meu irmão", "luz, paz e gratidão", coisas zen do tipo. Ordep jura que da última vez que o encontrou viu um sorrisinho de canto de boca esboçado na cara do senhor Otirb.

domingo, octubre 27, 2013

Transmissor de Calma

Beltrão Quilo era um Transmissor de Calma profissional. Era pago para atuar em situações de tensão, transmitindo calma às pessoas, e gabava-se de ser muito eficiente. Seus clientes sempre ficavam satisfeitos. 
Notara sua vocação desde cedo. Quando seus pais estavam brigando, ele aparecia para ver o que estava acontecendo e os gritos misteriosamente cessavam, os pais esqueciam o motivo da briga e reconciliavam, colocando o jovem Beltrão para dormir de novo com um beijo na testa. Já adulto, se alguém xingasse e ameaçasse Beltrão no trânsito, ele simplesmente abaixava o vidro e a animosidade do outro motorista desaparecia instantaneamente. 
Começou a cobrar por isso, e fazia sentido. Beltrão tinha ouvido falar de mestres zen, budistas, xintoístas, taoístas que faziam mais ou menos a mesma coisa, porém ele desconfiava as habilidades desses mestres eram treinadas, enquanto a dele era inata. Na verdade, apesar do efeito que sua presença causava, Beltrão não era religioso nem possuía um senso de moral dos mais fortes. Era um cara normal. 
Podia-se encontrá-lo trabalhando em reuniões de escritório, primeiros encontros, cirurgias cerebrais e promoções de roupas femininas em atacado. Sempre com o mesmo jeitão pacato, de bermuda, sandália de couro, barba comprida desgrenhada e olhos azuis serenos como um lago. Certa vez fora contratado por telefone para estar em um determinado banco em um determinado horário. O banco foi assaltado tranquilamente. Ninguém gritou, nenhum bandido se exaltou, nenhuma vítima resistiu. Tudo foi entregue na mais perfeita ordem, um assalto exemplar. Beltrão chegou a ser levado para a delegacia por suspeita de que fosse cúmplice, mas a polícia estava muito tranquila e o interrogatório logo terminou, com um clima ótimo e falta de provas.
A mesma delegacia resolveu contratar Beltrão para auxiliar em um perigoso atentado, transmitindo calma ao novato perito do esquadrão anti-bombas. Todos estavam seguros de que ia tudo dar certo. No entanto, ambos explodiram e morreram. Apesar de estar calmo, o perito era daltônico.
The fim.

viernes, mayo 31, 2013

adorador

busca ser profissional
pois não ama a dor

faz a torto, nunca direito
porque não procura a dor

até que usa celular
mas não carrega a dor

traz um brinco na orelha
que não alarga a dor

tem memória e senso estético
porém não decora a dor

quando sobe vai de escada
já que não eleva a dor

embora às vezes intimide
nem sempre assusta a dor

vive bem, sem ser sovina
só que não esbanja a dor

gosta de dar nome aos bois
só não denomina a dor

é dono de seu nariz
um que não governa a dor

não se chama de liberal
e também não conserva a dor

admira e ama a Terra
contudo não lavra a dor

tenta dormir bem-te-vi
pra não acordar com dor

pensa ser só criatura
mas para sempre cria a dor

domingo, mayo 05, 2013

Ego


dito maldito ego
de vez em quando te pego
controlando a minha vida
entidade enxerida

larga logo do meu pé
e me deixa ser
pare de fingir que é
trate de morrer

miércoles, abril 03, 2013

ângulo notável


você é tão direta
esse olhar em linha reta
toda quina, canto, aresta
esse amor, meu bem, não presta

se és fria e calculista
eu sou quente e letrista
pode ser que a gente insista
pode ser que nem exista

se eu penso e logo hesito
exit já pela saída
se a entrada é a própria vida
paro tenso, admito

viernes, febrero 15, 2013

lemins que

meus poemas andam tão ruins que
pensei em perguntar a Leminski

se um dia este servo pode
ter um terço de seu verso
e metade de seu bigode


martes, enero 08, 2013

Uma canção e uma história

Lembro-me de crescer ouvindo meu pai tocar uma canção muito bonita. Muito criança, eu ainda não tinha maturidade nem vocabulário para entender o que dizia, mas a música me enfeitiçava. Não sei se era a aridez exótica da harmonia, ou talvez o fervor com que meu pai cantava os versos, em notas longas quase desesperadas. Mas certamente uma frase que ele me disse eu nunca esqueci: "fiz pra sua mãe." 



E assim a canção ficou, permeando minha memória e minha história, pois retratava o amor que me gerou e do qual não tenho lembranças conscientes, pois meus pais se separaram quando eu era bebê. Até que em algum momento antes da virada do milênio, meu pai e sua esposa à época, Ana Mariah, resolveram gravá-la. Ei-la.


Já maiorzinho à época dessa gravação, me apaixonei mais ainda por ela e descobri alguns detalhes de sua história. A harmonia, tão sublime e meio oriental, ainda que simples, é mérito de Sérgio Duboc, grande violonista e compositor de Brasília, parceiro antigo do meu pai. Reza a lenda que ele chegou para o meu pai um dia e mostrou no violão essa nova música, ainda sem letra, que ele estava fazendo. Imediatamente meu pai pegou um papel e, em uma sentada, em um fôlego, compôs a letra. Sempre imagino essas cenas com um filtro meio sépia meio filme-dos-anos-80. Minha mãe me disse que na época ela ouvia muita música latina e andina, era fã do Tarancón, e suspeita que isso tenha inspirado meu pai a escrever um pedaço da letra em espanhol.




Em 2006 eu formei minha própria banda, a Cajamarca, e Como se Fosse sempre fez parte do nosso repertório. Eis um registro de 2009.



Em 2010 eu tive o prazer de descobrir no YouTube registros históricos do lendário show Tocarina, do qual meu pai sempre falou com paixão, como se fosse um dos maiores momentos da carreira dele como músico. Não sei como o produtor e idealizador Pierre Simões conseguiu recuperar essas imagens, mas serei eternamente grato por isso. Pela primeira vez eu pude ver o que antes só podia imaginar.



E graças à bênção do recurso de vídeos relacionados, descobri também essa versão de uma banda chamada Entressafra. Duas pessoas muito queridas, o casal de músicos Rui e Regina, que aparecem nessas fotos e vídeo, também se ligam à minha história, mas essa é uma outra história. ;) 



Finalmente, entre 2011 e 2012 a Cajamarca entrou em estúdio mais uma vez. Sob a direção e produção do nosso tecladista Florisvaldo Machado, gravamos a versão mais recente da Como se Fosse. Foi muito bom poder registrar, também, o lindo solo de violão de um dos meus melhores amigos na vida, Danilo Moraes. A percussão é trabalho do grande músico Leander Motta. Espero que gostem.



Fim?