sábado, junio 11, 2005

Poeta Enrustido

Como não houve muitos pedidos para a continuação de O Habitante, eu ainda não estou muito motivado para escrevê-la. Por enquanto, fiquem com uma crônica que eu escrevi no ano passado. Parece grande, mas não é. Deixem de preguiça e leiam, porque é engraçada.

Poeta Enrustido

É do conhecimento comum de toda a comunidade universal a singularidade do método reprodutivo dos homo-sapiens-sapiens. Não há nesta esfera nenhum ato tão sádico, apaixonado e ironicamente belo. A fonte única de tamanha beleza está obviamente na mulher. De fato, é nisso que ele está pensando, neste exato momento, enquanto contempla a perfeição das curvas, a precisão dos pontos de maciez e a inexplicável cor do corpo sonolento de sua amada, após uma noite de amor pulsante. Ela, em sua sensibilidade feminina, percebe no ar o teor sublime do instante e indaga:

- Que foi?

Mas não há resposta que se digne, não há palavras em nenhum idioma que possam transparecer uma vaga idéia daquilo que é nesse momento e para sempre será o objeto do seu regozijo visual. Agradece a Deus por ter olhos. E mãos.

- Você é linda.

- ‘Brigada.

- Obrigado a você.

Ela sorri. Ele é poeta, claro. Aquele tipo de homem que acha poético não ser poeta. Modesto, falsamente. Poeta, eu? Quem me dera... quem me dera... Sempre naquele ar melancólico de artista solitário, mas que não é artista, imagine, quem sou eu... Ela:

- Você tá daquele jeito de novo.

- Que jeito?

- Você sabe... poeteiro.

- Ora, que bobagem.

- Olha que cresce pêlo na mão, hem...

Riem, brincam com os travesseiros, recomeçando descontraidamente a velha discussão. Ela encosta o dedo sem esmalte na ponta do nariz dele, cantarolando.

- Poetinha, poetinha...

- Não so-ou, não so-ou...

- É si-im, é si-im...

- Ora, deixe disso.

Não era poeta, que coisa. Só porque tinha um violão, fumava e gostava de olhar o pôr-do-sol, admirando os tons de amarelo e laranja avermelhado pegarem fogo e sumirem num oceano azul que gradualmente se torna negro e salpicado de tremeluzentes pontículos brilhantes? Ela olha pra ele com aquela cara de paciência complacente.

- Pontículos, amor?

- Qual é o problema?

- Neologismo é coisa de poeta.

- Isso não é neologismo, é licença poétic...

- A-HÁÁÁÁ!

Ele fica vermelho de raiva, sabe que errou, quase falou besteira, ela era capciosa, sagaz, e a expressão de triunfo dela aumentava sua indignação.

- Boba!

- Enrustido!

- Não sou!

- É sim!

- A palavra existe, tá? Pergunta pro Houaiss!

- Quê?

- Esquece!

Não existia, ele já procurou. Existia pontícula, mas ela não ia cair nessa. Ela era realmente sagaz, irresoluta, talvez por isso ele se apaixonara. Contradições de poeta. Talvez no Aurélio tenha, ele pensa, mas não se anima para procurar. Eles ficam calados, emburrados, brabos, de braços cruzados por uns bons minutos. Até que os ânimos naturalmente vão se acalmando, aos poucos. Ela toma a iniciativa.

- Benhê...

- Hum.

- Que é que tem de mais?

- Em que?

- Qual é o problema em ser poeta?

- Nenhum, mas não é pra qualquer um, eu conheço o meu lugar no mundo, sou mundano, ordinário.

Metido, ela pensa, a fúria voltando às suas faces. Metido, metido, metido! Mas ela se controla, não se manifesta. Em vez disso sorri, passa a mão no rosto dele e pede:

- Admite, vai...

- Nunca.

- Por favor...

- Conforme-se, querida, você não ama um poeta. Minha veia poética é um mero capilar.

Ela não resiste. Pula na cama, ficando de pé, apontando para ele com um dedo acusador.

- Tá vendo!? Tá vendo!?

Ele peida alto e vai dormir na sala.

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